O Cozinheiro, o Ladrão, a sua Mulher, o Amante, o Engenheiro, as criadas de Mesa, a prima da China e muitos mais.


Trailer de uma festa em Arruda. Será Carnaval, ficção ou realidade?

Prologo
O Ladrão janta todas as noites solenemente na sala em companhia de seus capangas e da esposa. Pomposamente servidos pelas criadas sexy, comem fartamente os menus do chefe francês que sorrateiramente se desloca ao Good Grill para garantir tanto alimento.
Cansada dos modos violentos e grosseiros do marido, a esposa dá umas voltas à socapa com um solitário frequentador da casa, o engenheiro. Com a cumplicidade do chefe de cozinha francês, os dois amantes prosseguem as brincadeiras às escondidas pelos cantos da casa, onde nem a despensa escapa.
No entretanto, o Ladrão devora prato após prato na sua grande mesa, aparentemente focado na comida. De soslaio, pisca o olho à criada sexy com quem tem um caso as escondidas, na casa da lenha. Porém, quando descobre a traição da esposa, desfecha uma cruel vingança contra o engenheiro, que por sua vez será vingado pela Mulher tudo na noite de Carnaval e com a casa cheia de convidados. Nenhum contava porem com o olhar atento da prima da China, que pronta a por a boca no trombone troca a preciosa informação por uma malinha Burberry outros regalos de idêntico teor.
Trailer
Tudo parecia tão calmo na casa de Arruda. Na verdade, todos sabíamos que esta seria uma noite especial. Vinham as primas do oriente e muitos convidados. Como seria esta convivência? Conseguiriam eles manter as aparências no meio de tanta atribulação?
Na sequência inicial, cortinas abrem-se e num cenário ao ar livre desenrola-se uma cena de requintada elegância. O champanhe e o gin são servidos no alpendre à medida que os convidados chegam. O Ladrão apresenta-se a rigor tal como a mulher e de forma solene cumprimentam os convidados.
A seguir a câmara dirige-se para o interior da cozinha. As imagens da cozinha mostradas pela câmara são deslumbrantes. Os alimentos (carnes, aves, peixes, verduras, etc.) são revelados com todo vigor e exuberância de cores e formas, tendo como fundo musical sons e ruídos dos cortes e panelas fumegantes. A preparação dos molhos merece enquadramento especial. Nesse ambiente simples e esfumaçado, artistas e artesãos se esmeram na magia da transformação dos materiais elaborados pela natureza em obras de arte, com as orientações a rigor do “Chef”, cujo destino poderá ser a satisfação do prazer gustativo ou apenas servir para saciar a fome.
Chegam as primas da china e da índia, lindas de morrer! Cada vez mais belas, as primas mostram-se no seu esplendor, colorias e alegres, prontas para mais uma noite de folia. Chega o Pirata e a Abelha, e mais convidados de renome.
A passagem da cozinha à sala é apoteótica. A câmara desloca-se e um fundo musical anuncia a mudança de uma forma de ordenamento à outra. Na sala o ar solene, a decoração artificial, o alinhamento simétrico dos móveis e a cobertura macia das mesas, a disposição rígida de pratos e talheres, o brilho e a transparência dos cristais. Ainda no semblante dos convivas, a ansiedade da fome ou até o sossego pela graça alcançada e pelo prazer e simpatia do convite.
O jantar vai ser servido. À table! Grita o chefe francês enrolando o seu bigode!
A mesa está linda e as entradas parecem divinais. Os olhos do Ladrão e dono da casa brilham com tanta comida e com os rabos das criadas que rodopiam à volta da mesa prontas para todos servir. Todos começam a comer. O fluxo entre a sala e a cozinha é imparável! Comida e mais comida e mais comida.
Este enredo tem como fio condutor a inusitada paixão da Mulher por um amigo da casa, engenheiro de profissão gourmet nos tempos livres. Os dois, com a cumplicidade apaixonada do cozinheiro, transformam a cozinha e a despensa da “Casa do Alto” no local para os seus encontros amorosos. Tudo se faz às barbas do brutamontes Ladrão, que pouco a pouco passa a desconfiar das constantes e inexplicáveis fugas de sua mulher à Toilette.
Ao mesmo tempo e enquanto as primas da China e da Índia se deleitam com os manjares da casa do Alto, com os acepipes do chefe e até com o chefe, a mulher sai de fininho com destino à toilette. De forma discreta o engenheiro também sai. Vai ao terraço e fuma um cigarro. Tal como o fumo, esfuma-se e a porta da dispensa fecha-se. As cenas de amor entre e sobre os alimentos frescos ou defumados são sensuais, picantes e temerárias. O clima de suspenso, ao estilo hitchcockiano, pelo temor e risco do flagrante, cerca todos os encontros dos amantes, sem, no entanto, inibir o calor da paixão. A fuga dos amantes entre alimentos alucina e nauseia. Cai o arroz os chouriços e as couves da avó Petta (que não veio pois não gosta nada de carnavais! Ao convite disse “…ó filho, isto a minha vida é que é um Carnaval com tanto animal para tratar”).
O ladrão dá um arroto e pede licença para se ausentar. A caminho da cozinha foge com a criada sexy para a casa da lenha e entre os toros sujos e o latir do cão tudo acontece.
Aos poucos todos regressam e tudo volta a normalidade na sala e o cheesekake é servido. Magnifico como sempre o contraste entre o doce vermelho e branco do queijo reabre os apetites. Os convivas babam-se, e a prima da China come mais uma fatia avantajada.
O jantar prossegue com os chás importados e os cafés quenianos do costume, os whiskies e os conhaques. A sala enche-se de fumos dos “cigars” e o ambiente carrega-se de boémia. A música começa a animar com o cozinheiro a fazer uma perninha de DJ. A Daniela canta o “feijão com arroz” e o Ricky Martin grita “uno, dos, três, Maria….”. Todos saltam e dançam ao sabor da música tocados por tanto champanhe e vinho de Arruda, o “mono caixa” do costume.
O álcool faz os seus efeitos e, discretamente, não resistindo a sedução das ancas, a mulher pisca o olho ao engenheiro para mais uma fuga à dispensa. Cada um na sua vez e sempre discretamente, o amor acende-se na dispensa, agora já quase sem espaço entre garrafas vazias e caixas de alumínio do Good Grill já sujas escondidas pelo “chef” para que ninguém saiba que afinal o cardápio com as mais diversas iguarias - Canard à l’orange (Pato com laranja); Le coq au vin (Galo ao vinho); Salade de langoustine (salada de lagostim); Terrine de caneton (patê de pato); Sauce hollandaise (Molho holandês); Abacate ao vinagrete e camarões – foi tudo importado da rua de baixo.
A câmara abandona este amor carnal e move-se para a sala de novo, o centro da festa onde a animação prossegue. As primas da índia saltam de contentes e a prima da china não lhe fica a atrás. Com tanto salto e tanto cheesecake, dá-lhe a voltareta e toca de ir à toilette. Tanto gin e tanto champanhe deram-lhe volta a cabeça e os caminhos confundem-se. Perante o olhar desatento do cozinheiro, supostamente de guarda à sua dispensa, a prima da China troca a porta e entra na dispensa deparando-se com o acto. Fecha a porta apressada e volta a abrir para confirmar…era mesmo o engenheiro com a dona da casa! Volta atordoada para a sala e quase se esquece dos seus intestinos. Mas cheesecake não lhe perdoa e fá-la correr agora sim para a porta certa da toilette.
Quando volta finalmente à sala, já o engenheiro e a mulher davam saltos com a Anastácia, que insistentemente gritava “Hey, Hey, Hey, was Left Outside Alone”. A prima ausenta-se para a biblioteca e senta-se aturdida pelo acontecimento e pelo esforço intestinal.
O cenário muda e no meio de tanto acontecimento ninguém deu por falta do Ladrão dono da casa e de umas das criadas sexy. Voltamos à casa da lenha onde o whisky já faz estragos, perante o olhar arregalado do Cookie, o cão da família, mais um acto se consome, apesar das banhas e do estômago cheio de comida do Ladrão. O esforço estonteie-o e, enquanto a cridas sexy volta para a cozinha para os seus afazeres, o Ladrão refugia-se na biblioteca para uns cinco minutos de relax. No escuro encontra a prima da China, que num sorriso sarcástico lhe pergunta se tudo está bem. A ironia da prima fá-lo desconfiar e tirando nabos da púcara confirma a traição da mulher, isto sem antes ser obrigado a ceder uma malinha Burberry e outros regalos de idêntico teor em troca de tão preciosa informação.
Volta à sala como se nada fosse, mas com o seu suor a transpirar vingança e raiva pela maldade da mulher e do engenheiro. A vingança urdida pelo traído Ladrão é brutal e insólita. Após localizar o refúgio dos amantes, a despensa da Casa do Alto, e procurando um momento de distracção dos convidados, assassina o amante por asfixia e ingestão forçada das couves e dos nabos da Achada, e dos restos das pernas de pato e dos cogumelos. Ninguém dá por nada! Só o cozinheiro, fiel dono da dispensa…se deparar com tamanha atrocidade horas depois e disto dá conta à mulher dona da casa.
A vingança de mulher, por sua vez, não é menos estranha. Enquanto todos se divertem madrugada dentro, convence o cozinheiro a usar em toda plenitude o requinte de sua arte, assando o amante por inteiro e, num ritual de antropofagia e vingança, serve seu corpo ao marido no almoço do dia seguinte.

Epilogo
Assim termina mais uma festa na Casa do Alto onde a alegria da festa e gastronomia são sobejamente realçadas. Com sua natureza trágica e irrecorrível, o dilema da vingança é contemplado no acto de comer quando dona da casa ao almoço afirma: “...comer coisas pretas é como se comesse a morte… as azeitonas são pretas”, perante o olhar agoniado das primas do oriente ainda a recompor a compostura da noite anterior, mas sem nada perceberem. Foi efectivamente uma noite especial, onde quem saiu a lucrar foi a prima da china, pois no meio de tanta tragédia, a malinha Burberry já ninguém lhe tira.

The END

O meu país inventado


“Há uma certa frescura e inocência nas pessoas que permanecem sempre no mesmo local e contam com testemunhos da sua passagem pelo mundo. Em troca, aqueles de nós que partimos, muitas vezes desenvolvemos por necessidade uma couraça mais dura. Como carecemos de raízes e de testemunhos do passado, temos de confiar na memória para dar continuidade às nossas vidas; mas a memória é sempre confusa, não podemos confiar nela. Os acontecimentos do meu passado não têm contornos precisos, estão esfumados, como se a minha vida tivesse sido uma simples sucessão de ilusões, de imagens fugazes, de assuntos que não compreendo ou que compreendo só em parte. Não tenho certezas de espécie nenhuma. “

de O meu país inventado. Isabel Allende